quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os dois 'eus'

Eu sou dois e, ao mesmo tempo, não sou ninguém. Exatamente por isso que eu (não sei qual dos dois que está escrevendo) sou tão louco.
O suposto primeiro “eu”:


Este quer viver na cidade pequena, com o mínimo de luxo possível, se alimentando com qualidade, praticando esportes. Esse Lucas escuta músicas tradicionalistas, MPB e blues, não se importa com o que os outros pensam a respeito de suas roupas velhas e fora de moda. Ele vive feliz, assistindo aos jogos do brasileirão, sabendo as escalações de todos os times, Ele nunca irá ao estádio ver os jogos do seu time, pois é muito perigoso. Os estádios estão cada vez mais violentos, além disso, ele precisa guardar dinheiro para a velhice. A sua saúde e seu futuro o preocupam muito. Não pensa em estudar, uma vez que seu grande herói de adolescência, o Mr. Pi, chegou ao sucesso sem ter diploma. Ele também é muito fã do Pink Floyd (nesse ponto os dois Lucas combinam) e o refrão de Another Brick in the Wall II é bem direto: “Não precisamos de nenhuma educação”. Portando, faculdade para que? Não precisava nem ter feito ensino médio.

Os lugares cheios o incomodam e o olhar crítico de uma pessoa o deixa vermelho.

Ele terá uma velhice saudável ao lado de sua esposa, a única namorada que teve na vida. Eles se conheceram em uma das tardes de verão que Lucas passa com a família no Balneário Bela Vista, em Cachoeira do Sul. Ela não tem nenhum tipo de beleza física, mas a simplicidade e a humildade são o que importa.

Ele gosta de política, a revolução francesa o fascina, acha que tudo está errado, mas seu egoísmo e individualismo não o permitem lutar por nada, só por ele mesmo. Não vale a pena deixar de assistir a estréia do Internacional na Copa Sul-americana, ao vivo na RBSTV, para ir reivindicar na reunião do sindicato dos correios. Passou no concurso logo após seu aniversário de 23 anos, está prestes a se aposentar e nunca vira tamanha mobilização de sua classe na luta por aumento salarial. Ele é totalmente contra a greve, mas não diz isso aos colegas e sempre que eles decidem pela paralisação, ele adere de forma obediente.

Sua rotina é acordar às 6h45, ler os jornais, tomar café com bolo de milho e pão caseiro e ir para o trabalho no carro que comprou no segundo ano de trabalho. Vai para casa almoçar a sobra da janta, assiste ao Globo Esporte espalitando os dentes enquanto a esposa lava a louça. Os dois se perguntam, se lamentando: “Por que nosso filho saiu de casa, se ele tinha tudo aqui, casa, comida e roupa lavada?” Lucas volta ao trabalho às 13h30min, retorna às 18h30min, toma banho, faz uma roda de chimarrão com os amigos de infância, que ainda são seus vizinhos, e janta, pontualmente, às 20h15min. Comer tarde prejudica a digestão.

Nos finais de semana, liga para seu filho, que está em Santa Maria fazendo cursinho para tentar entrar na faculdade de Direito. O pai faz questão de relembrar ao filho de todos os conselhos: “não abra a porta para estranhos”, “não experimente drogas, pois poderá ficar viciado”, “coma frutas”, “não beba”, “não coma fast-food” e o principal; “estude, pois estudo é a única coisa que ninguém tira da gente”. Joga futebol sábado à tarde e, depois, assiste a um jogo da série B do brasileirão observando a esposa preparar a janta especial de sábado.

Lucas era feliz, até pouco tempo, pois nunca esperou muito da vida, mas nos últimos anos anda decepcionado com o aumento da violência, com o fato de seu filho ter ido embora sem nenhuma explicação e, principalmente, porque tem observado que as famílias de hoje em dia não são mais unidas, não comemoram o Natal com toalhas vermelhas nas mesas nem se preocupam em almoçarem juntas no domingo.
Esse primeiro Lucas terá um velório e um caixão de luxo, pois guardou dinheiro a vida toda para isso.